RETALHOS DE BRASIL

Stefania Chiarelli

É possível, de algum modo, em tempos globais, ter-se um sentimento
de identidade coerente e integral?

Stuart Hall


        Pensar o romance Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, de modo a ver de que maneira articula questões referentes à representação da diferença e da alteridade são algumas das questões suscitadas pela narrativa. Texto que se propõe a rasurar determinadas visões totalizadoras, Relato de um certo Oriente surge como um lugar teórico que torna propícia a reflexão sobre a questão das identificações, examinando o espaço híbrido em que se situam personagens e situações do romance. A construção desse discurso interessa-nos na medida em que articula um modo de pensar a Nação como uma pluralidade, em oposição à idéia de unidade, ocupando um lugar de enunciação que rejeita as categorias puras e elege o híbrido. A partir da perspectiva teórica de Homi Bhabha, refletimos sobre esse romance que se oferece como uma possibilidade de ilustrar um Brasil com muitas facetas, visto de diferentes e ricas perspectivas: “o olho mais fiel pode ser aquele da visão dupla do migrante”, afirma Bhabha a esse respeito.
        O conceito de identificações, neste sentido, parece-nos bastante eficiente, uma vez que dá conta dessa realidade impura em que se situam as personagens de Milton Hatoum. Ao contrário das noções que estariam embutidas na idéia de identidade, atrelada a um sentido uno e fixo, as identificações operariam no sentido de uma passagem intersticial, afirma Zilá Bernd.
        Nesse retalho de vida que se narra, existe a preocupação de não idealizar a cultura árabe, uma vez que os conflitos, as contradições e as fissuras são encenadas. Hatoum não tenta definir um tipo fixo para seus personagens árabes, construindo uma identidade fechada. Pelo contrário, ele situa suas personagens no hibridismo, no lugar em que o brasileiro, o manauara, o árabe se encontram e se interpenetram. Não há uma cristalização das categorias, e tampouco uma fetichização das identidades no romance. Tem lugar a pluralidade, que aliada à dicção lírica do texto, revela nas entrelinhas uma realidade singular de seres que compõem uma das muitas faces do Brasil.

1. ACERCA DO AUTOR E DAS CIRCUNSTÂNCIAS DE SUA OBRA

        Milton Hatoum é filho de pai árabe, mãe portuguesa e avó libanesa. Nasceu em Manaus, leciona literatura francesa na Universidade do Amazonas e é professor-visitante da Univesidade da Califórnia. Em 2000, publicou seu segundo romance, intitulado Dois Irmãos, em que retoma vários pontos abordados em Relato de um certo Orientei , a exemplo da ambientação no norte do país, da temática familiar de imigrantes libaneses e do tom memorialístico da obra.
        Por alguns desses motivos, Hatoum certamente está em diálogo com a escrita de Raduan Nassar, grande admirador que foi do romance Lavoura Arcaica, sobre o qual foi convidado a escrever nos Cadernos de Literatura Brasileira, publicado no ano de 1996. Afirma: “Raduan talvez seja o primeiro ficcionista brasileiro de origem árabe a evocar de maneira tão densa e lírica certos temas da cultura oriental, mas num ambiente brasileiro e ‘tradicional’, ou arcaico, como diz o título, que evoca as relações de trabalho e poder numa fazenda paulista”. Ele prossegue:

Além disso, em Lavoura Arcaica pude reconhecer muitos traços da cultura do imigrante árabe, traços que se ajustam muito bem a uma tradição comum, a uma experiência milenar que os primeiros imigrantes haviam trazido do Líbano. O quarto, a casa e a fazenda, espaços que Raduan expande e dilata, palcos de um drama familiar ou da relação tensa de um casal, foram talvez mais importantes para eu pensar no romance que comecei a escrever por volta de 1982, quando morava na França (Hatoum, 1997: 20).

        Esse romance viria a ser RCO, vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance em 1990, e que trata da história de uma família de imigrantes libaneses, desta feita radicada na Amazônia.         Quando se pensa no Brasil, facilmente surge a figura do “turco” como o imigrante e comerciante por excelência. O termo pejorativo, utilizado para designar indistintamente sírios e libaneses, acabou por ser incorporado à língua oficialmente. Em artigo que mapeia a situação dos imigrantes árabes, Oswaldo Truzzi mostra como essa identidade marcante acabou sendo negociada a favor de uma imagem positiva, associando-a à figura do mascate, “invocado como autêntico bandeirante... do comércio, integrador e difusor das novidades da capital pelos sertões do Brasil afora” (Truzzi, 2000: 334).
        A imigração árabe resguarda uma característica bastante peculiar no tocante à ocupação do espaço no país. Por não desejarem trabalhar com a agricultura, diferentemente das outras etnias, os imigrantes sírio-libaneses acabaram se espalhando por todos os recantos do Brasil para efetuar o comércio, o que os obrigou a aprender o português rapidamente. Dessa forma, o que se observa é uma ocupação espacial totalmente diferente da alemã e da italiana, muito mais concentrada em localidades como o Sul e o Sudeste do Brasil. Neste caso, o comércio e a figura do viajante se unem e geram uma identidade associada à ocupação do interior do país, aliando-se ao fato de que o perfil do imigrante sírio-libanês era o do homem solteiro, o que acabou facilitando a miscigenação. É esse quadro histórico, que alia a figura do libanês ao comércio e a uma certa facilidade de penetração no interior do país, que surge a caracterização de personagens marcantes da obra de Hatoum, a exemplo da matriarca Emilie, seu marido comerciante e a própria loja A Parisiense.
        Primeiramente, é necessário que se faça uma breve alusão ao título da narrativa, que oferece uma interessante chave de leitura para o romance. Relato remete à palavra francesa récit, e é somente a primeira das muitas referências francesas da obra. Remete também a uma tradição oral, em diálogo claro com as Mil e uma noites. A alusão a um certo Oriente nos dá pistas sobra a idéia de um recorte, de um ponto de vista, em contraposição a um sentido de totalidade.
        No desenho geral, o romance seria uma espécie de carta (sem nunca explicitar o nome do emissor ou do destinatário) que a narradora escreve, revelando a morte da matriarca Emilie, “numa carta que seria a compilação abreviada de uma vida”. Nela, ao ordenar diversos relatos, vai incorporando diferentes falas - dela própria, do seu tio Hakim, do fotógrafo Dorner, de seu pai, da amiga Hindié Conceição.

2. A NARRAÇÃO COMO PERFORMANCE

        A narradora, cujo nome permanece sem ser revelado na narrativa, tenta recuperar sua própria história através de fitas, depoimentos, e reflete sobre a forma que daria a isso tudo quando retorna à casa de Emilie: “isso me alijava do ofício necessário e talvez imperativo que é o de ordenar o relato, para não deixá-lo suspenso, à deriva, modulado pelo acaso” (Hatoum 1997: 165). Seu passado é incerto. Filha adotiva de Emilie, tem um irmão que é o destinatário de todas as suas reflexões. Ambos são filhos de uma mulher que nunca pronunciou seu nome, portanto, protagonistas de uma “história de um desencontro” com a figura materna. Ao final da narrativa, somos informados que esteve internada em uma clínica psiquiátrica, de onde já saiu. “Eu, ao contrário, não podia, nunca pude fugir disso. De tanto me enfronhar na realidade, fui parar onde tu sabes: entre as quatro muralhas do inferno” (ibidem: 135). Ao ser adotada, passa a pertencer a duas culturas e línguas diferentes, a árabe e a brasileira.
        A recuperação dessa memória perdida não é feita de forma cronológica. Da mesma forma que não o são os caminhos da memória, simultânea, caótica, não-linear. O relato tenta imitar esse percurso, evitando que haja um plano sucessivo e linear na montagem das lembranças.
        Assim, somos dirigidos a uma situação permanente de indefinição, de falta de contornos precisos, de uma realidade intervalar. O desenraizamento da narradora vem de diversas origens: é adotiva, emocionalmente instável, pertence a dois universos culturais diferentes. Poderíamos nos perguntar se o relato seria esse contorno, essa moldura almejada, se a escrita dessa memória seria a possibilidade da narradora encontrar-se consigo, buscando fundar, via escritura, algo que se perdeu: identificações culturais, familiares, psicológicas. Em um dado momento da narrativa, já na clínica psiquiátrica, o desenho que faz, a partir do papel picado e colado das cartas rasgadas, vagamente lembra-lhe um rosto. “Sim, um rosto informe ou estilhaçado, talvez uma busca impossível neste desejo súbito de viajar para Manaus depois de uma longa ausência” (ibidem: 163).
        Diante do problema que se impõe: “como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros?”, a narradora, ao final do texto, se coloca na posição privilegiada para contar a história: “Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes” (ibidem: 166). Dessa forma, tira proveito de seu dilema, atrelado ao deslocamento e à sua condição marginal, para organizar os relatos. Sente-se capaz de recuperar a referida “melodia perdida” pelo prisma de sua própria subjetividade.
        Sua forma de contato com o mundo não será a queixa. Pelo contrário, cria uma estratégia positiva ao narrar, alinhando-se ao lado dos fortes, e não dos ressentidos. Narrar, então, equivale a resistir à morte. Narrando ela pode resistir à loucura, ao desenraizamento, ao desmantelamento familiar. Através do Verbo ela pode, enfim, almejar a reorganização dessa melodia perdida a que se refere.
        Segundo declaração do próprio autor, RCO é uma história “narrada por uma Scherazade do Amazonas”. Ou seja, as referências aqui já se encontram misturadas: a personagem mais famosa dos contos orientais ambientada na região norte do Brasil. Não é à toa que isso acontece, e nos fala de uma possibilidade de narrar o Brasil a partir de um recorte, no mínimo, inusitado.
        Na fala do pai, mais uma vez aparece referência à narrativa oriental, uma vez que as histórias que contava como sendo passagens de sua vida eram mescladas com aquelas das Mil e uma noites: “os episódios de sua vida eram transcrições adulteradas de algumas noites, como se a voz da narradora ecoasse na fala do meu amigo” (ibidem: 79), afirma Dorner. Assim sendo, o pai se apropria daqueles episódios ficcionais e incorpora-os à sua própria vivência, como se fossem reais. Incorporando a ficção ao real, o pai demonstra mais uma vez o diálogo com o texto tanto de Mil e uma noites quanto o próprio Alcorão, sua leitura predileta.
        Encontramos ainda outro eco da história árabe em Anastácia Socorro, a empregada da família, que lá aparece como uma outra Scherazade. Esta narra para não morrer e, no dizer de Italo Calvino, dilata o tempo pela proliferação de uma história em outra: “A arte que permite a Scherazade salvar sua vida a cada noite está no saber encadear uma história a outra, interrompendo-a no momento exato: duas operações sobre a continuidade e a descontinuidade do tempo” (Calvino, 1990: 51).
        Anastácia, por sua vez, narra para não trabalhar. Vejamos o impacto das palavras de Calvino na descrição do diálogo da empregada com Emilie:

Ao contar histórias, sua vida parava para respirar; e aquela voz trazia para dentro do sobrado, para dentro de mim e de Emilie, visões de um mundo misterioso: não exatamente o da floresta, mas o do imaginário de uma mulher que falava para se poupar, que inventava para tentar escapar ao esforço físico, como se a fala permitisse a suspensão momentânea do martírio (...) (Hatoum, 1989: 92, grifo nosso).

        Em contraponto, a personagem Emilie aparece como a mãe que congrega, o amor incomensurável, a gênese da família. Vale notar que, em árabe, emi significa mãe. Dona de temperamento marcante e decidido, ela conta histórias do Oriente, e “inventava todos os dias um idioma híbrido” (ibidem: 166). Em todo o romance encontram-se personagens femininos fortes: de um lado, está presente o matriarcado amazonense, a herança indígena, de uma mulher que não é submissa, mas ativa. De outro, esse elemento se mescla à já tradicional imagem da mulher árabe à frente da família.ii
        Para refletir sobre a atuação de Emilie na narração, faz-se necessária uma abordagem da concepção de Homi Bhabha sobre o caráter pedagógico e o caráter performativo da linguagem:

O pedagógico funda sua autoridade narrativa em uma tradição do povo, descrita por Poulantzas como um momento de vir a ser designado por si próprio, encapsulado numa sucessão de momentos históricos que representa uma eternidade produzida por auto-geração. (...) No lugar da polaridade de uma nação prefigurativa auto-geradora “em si mesma” e de outras nações extrínsecas, o performativo introduz a temporalidade do entre-lugar (Bhabha, 1999: 209).

        Assim sendo, segundo essa concepção, poderíamos afirmar que Emilie estaria muito mais ligada a um caráter pedagógico da linguagem, vinculada à tradição e à continuidade histórica. Indagada sobre a possibilidade de ter de retornar ao seu país, afirma: “– Não faz mal – no Líbano tenho o relógio que quero e, além disso, não vou precisar gaguejar nem consultar dicionários para falar o que me der na telha”.Não é a toa que o relógio secular parado na sala era seu objeto do desejo: indício de uma temporalidade parada, suspensa, quase imóvel. Por outro lado, a narradora estaria exercendo esse outro caráter performativo da linguagem a que se refere Bhabha, uma vez que tenta articular, no espaço híbrido do relato, as diversas cisões com que se depara: a cultural –árabe/brasileira; a familiar – ser filha legítima/bastarda; e a psíquica – loucura/normalidade. Diferente de Emile, em seu pulso há um relógio mil vezes consultado, “muitas vezes inutilmente, outras para que o tempo voasse ou desse um salto inesperado” (Hatoum 1997: 12).
        Na economia da narrativa, Emilie forma com o marido um par que joga com a questão dos opostos: cristã devota, detentora de fala expressiva, entra em choque com ele, leitor atento e dedicado do Alcorão, caracterizado pela reclusão e pelos silêncios taciturnos. Há uma pequena guerra doméstica sempre em curso, e a impressão que se tem é que o conflito é inerente ao próprio funcionamento do casamento, uma vez que os dilemas são resolvidos de duas formas: através do sexo e da comida. “Ela cochichava à empregada que o rancor de um homem apaixonado se amaina com carinho e quitutes” (ibidem: 46).
        É interessante pensar sobre o papel desempenhado pelas refeições nos hábitos da família:

“Milagre da carne e do pensamento, o banquete da hospitalidade é a utopia dos estrangeiros: cosmopolitismo de um momento, fraternidade dos convivas que acalmam e esquecem as suas diferenças, o banquete está fora do tempo. Ele se imagina eterno na embriaguez daqueles que, entretanto, não ignoram a sua fragilidade provisória” (Kristeva, 1994: 19).

        Emilie incorpora a mãe que só se satisfaz ao ver os filhos comendo: “bastava que um filho devorasse quantidades imensas de alimentos, como se o conceito de felicidade estivesse muito próximo ao ato de mastigar e ingerir sem fim” (Hatoum 1997: 89).
        Nas muitas passagens que evocam os rituais da comida, se têm momentos marcantes da narração: “Só os figos da minha infância me deixavam daquele jeito. O aroma dos figos era a ponta de um novelo de histórias narradas por minha mãe” (ibidem: 89). À semelhança das madeleines de Proust, a evocação dos figos de Emilie traz a irrupção de uma memória que rende belas passagens em RCO. É nesses momentos que se percebe a divisão do mundo da imigrante, “sem se dar contas, tua avó deixava escapar frases inteiras em árabe” (ibidem: 90). Falar da infância, do aroma dos figos, para Emilie, só é possível no idioma natal. Da mesma forma, quando envelhece, “só escutava a voz de duas ou três pessoas, além de Hindié’ Conceição, e assim mesmo era necessário falar aos berros, bem devagar e em árabe” (ibidem: 29). Mais uma vez se encena a questão do caráter pedagógico da linguagem que se configura no discurso dessa personagem.
        Ainda elucidando a questão das referências duplas a que se expõem os membros da família, observe-se a passagem narrada pelo personagem Hakim: “Desde pequeno convivi com um idioma na escola e nas ruas da cidade, e com outro na Parisiense. E às vezes tinha a impressão de viver vidas distintas” (ibidem: 52). Filho preferido de Emilie, Hakim seria o típico “sujeito que habita a borda de uma realidade intervalar” (Bhabha, 1999: 35), e nesse sentido, atuaria no campo da perfomance ao transitar entre as duas línguas que encenam essa diferença cultural.

3. SOBRE A COR LOCAL

        Tópico sempre revisitado, aqui se assoma mais uma vez a necessidade da discussão da existência da cor local no romance. Ana Cláudia Fidelis observa que, se por um lado há textos que valorizam a exuberância da paisagem amazônica, reforçando estereótipos, por outro, há “narrativas que dão uma resposta a essa construção de uma Amazônia exótica ou maravilhosa, afastando-se dessa concepção e criando um contraponto” (Fidelis, 1998: 60). Alinha neste segundo tipo RCO, que extrapolaria o caráter eminentemente regionalista. Ao analisar RCO, é inevitável se pensar em dois pontos que se impõem: o primeiro, referente ao fato de constituir-se em um romance que tematiza o Amazonas sem ser regionalista, evitando exaltar apenas o aspecto exótico dessa região; e, o segundo, ao ser brasileiro, evita repisar aspectos exóticos do Brasil.
        De acordo com o conhecido texto de Machado de Assis, um traço característico da prosa brasileira no final do século XIX era falar do país através da cor local, sinônimo de uma literatura autêntica. Propondo uma outra maneira de se fazer literatura, Machado acreditava que fosse possível referir-se ao Brasil sem necessariamente lançar mão da cor local, evitando o traço documental da narrativa, o que considerava limitante.
        Novamente vem à tona as palavras de Bhabha, em passagem que se refere a Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie:

O que é mais importante, e que está em tensão com o exotismo, é a emergência de uma narrativa nacional híbrida que transforma o passado nostálgico num “anterior” disruptivo e desloca o presente histórico – abre-o para outras histórias e assuntos narrativos incomensuráveis (Bhabha, 1999: 235).

        Ainda dentro dessa linha de pensamento, vale também lembrar a reflexão do escritor argentino Jorge Luís Borges, quando se propõe a examinar a importância da cor local nos textos dos seus conterrâneos. Afirma: “A idéia de que a poesia argentina deve ser rica em traços diferenciais argentinos e em cor local argentina me parece um equívoco.” (Borges, 1998: 290) No mesmo texto, o autor cita obra de Gibbon, referindo-se ao fato de que este autor observa que no Alcorão – o livro árabe por excelência - não há um só camelo. Borges afirma:

(...) a primeira coisa que um falsário, um turista, um nacionalista árabe teriam feito seria povoar de camelos, de caravanas de camelos, cada página; mas Maomé, como árabe, estava tranqüilo: sabia que podia ser árabe sem camelos. Creio que nós, argentinos, podemos nos parecer a Maomé, podemos acreditar na possibilidade de sermos argentinos sem profusão de cor local (Borges, 1990: 291).

        Hatoum consegue de fato escapar da armadilha dos camelos: não há no romance a exuberância – e a obviedade - da floresta, dos igarapés, dos índios, figuras repisadas do imaginário amazônico. Ao contrário: questões mais sutis se assomam, como o conflito da tradição (representada pela casa materna) com a modernidade (representada pela cidade e seu caos) e o conflito da natureza da selva com a cultura da cidade. Longe de idealizada, Manaus é muitas vezes apresentada como inferno:

A vazante havia afastado o porto do atracadouro, e a distância vencida pelo mero caminhar revelava a imagem do horror de uma cidade que hoje desconheço: uma praia de imundícias, de restos de miséria humana, além do horror fétido de purulência viva exalando da terra, do lodo, das entranhas das pedras vermelhas e do interior das embarcações. Caminhava sobre um mar de dejetos, onde havia tudo: cascas de frutas, latas, garrafas, carcaças apodrecidas de canoas, e esqueletos de animais (Hatoum 1997: 124).

        Manaus é um tópico, a selva amazônica também, mas ambas têm o intuito de revelar um Brasil cheio de contradições, através da perspectiva dos imigrantes libaneses e seus conflituados descendentes. A cidade aparece na narrativa muito em função de seu porto. Ele é o lugar que espelha a diversidade, metáfora do efêmero e da viagem, espaço de confluência de estrangeiros, da disseminação de que nos fala Bhabha. Seus personagens estão decididamente marcados pelo deslocamento: Emilie e o marido, imigrantes que partiram do Líbano e chegaram ao Brasil, o fotógrafo/viajante Dorner, o irmão da narradora, que parte para Barcelona, Hakim, que deixa a família.
        Do outro lado, espaço que ilustra as idas e vindas dos personagens, a casa estrutura de forma clara a narrativa. Ela é o palco onde são encenadas e resolvidas as questões familiares, entre os pais, entre os pais e os filhos, entre os vizinhos. É praticamente uma personagem adicional do romance, elemento que congrega e espelha as emoções e sentimentos da família. Suas paredes são desenhadas, seus contornos ganham vida, ela está investida de significados.
        Ao mesmo tempo, vai perdendo vivacidade à medida que avançamos em direção ao final. A casa está vazia e abandonada quando a narradora retorna, indício de que ela e Emilie estão em simbiose: morta a primeira, a segunda já não significa muita coisa. Quem passará a doar-lhe sentido e ressignificá-la será a narradora, através de seu relato.
        Enquanto a casa/ninho mostra-se indissociável da figura materna, a loja A Parisiense aparece como o espaço ligado ao pai: é na quietude da loja fechada que ele lê o Alcorão, onde se refugia em seus momentos de conflito. Espécie de concha protetora, fechada sobre si mesma, a loja parece estar separada do mundo, um lugar da absoluta introspecção e privacidade.
        Se por um lado o autor se vale de um modelo de romance e de uma linguagem bastante tradicionais, sem grandes rupturas, por outro, ele apresenta uma narrativa bastante estimulante ao propor aspectos ricos à discussão sobre as identificações possíveis do brasileiro. Ao apresentar esse espaço híbrido das vivências, da língua dos imigrantes e de seus descendentes em um ambiente absolutamente característico do norte do país, o autor o faz sem apelo a clichês ou a metáforas estereotipadas.
        A tentativa da narradora de colar os diversos relatos, partindo de sua própria memória e lançando mão da memória dos demais, alude ao caráter performativo da linguagem, momento em que as versões, muitas vezes conflitantes, se acomodam para dar lugar a uma colcha de retalhos. Ela tenta dar conta de uma parte da história de uma certa família de um certo Amazonas, de um certo Oriente, de um certo Brasil. Não haveria, então, a pretensão de uma totalidade, e sim a consciência da possibilidade de se narrar uma fatia de vida, com toda a incompletude que isso encerra.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, MACHADO de. “Literatura Brasileira. Instinto de nacionalidade” in Obras Completas, Vol. 29: Crítica Literária. Rio de Janeiro: W M Jakson, 1962.

BERND, Zilá. “Identidades e nomadismos”in JOBIM, José Luís (org) Literaturas e identidades. Rio de Janeiro: UERJ, 1999, p 95-111.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

BORGES, Jorge Luís. “O escritor argentino e a tradição” in Obras completas, vol 1 São Paulo: Globo, 1998.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FIDELIS, Ana Cláudia. Entre Orientes – viagens e memórias. A narrativa Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum. IEL, Unicamp: Dissertação de Mestrado,1998.

HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

KRISTEVA, Júlia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

TRUZZI, Oswaldo. “Sírios e libaneses e seus descendentes na Sociedade Paulista”, In Fazer a América. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 334.




i Doravante, passaremos a fazer alusão ao romance sempre pela sigla RCO
ii Devido ao estereótipo que predomina na construção do olhar sobre a mulher árabe é importante distinguir a mulher de família libanesa – menos submissa e mais independente – daquela de países como o Irã ou Arábia Saudita, países em que ainda persiste intensamente a repressão feminina.